O Contexto
Em 1958, a revista Harvard Business Review (novembro-dezembro), publicou artigo intitulado “Management in the 1980’s”, onde os autores (Harold J. Leavitt e Thomas L. Whisler) cunharam o termo tecnologia de informação, analisaram sua influência e seus efeitos nos negócios e fizeram previsões para mais de 20 anos à frente. Vale destacar, dentre outros, alguns trechos do artigo:
“Ao longo da última década, uma nova tecnologia começou a se firmar nos negócios americanos, uma tecnologia tão nova que seu significado ainda é difícil de avaliar. Embora muitos aspectos dessa tecnologia sejam incertos, parece claro que ela se moverá para a cena gerencial rapidamente, com impacto definitivo e de longo alcance na organização gerencial. (…) A nova tecnologia ainda não tem um único nome estabelecido. Vamos chamar-lhe tecnologia da informação.”
“Ao permitir que mais informações sejam organizadas de forma mais simples e processadas mais rapidamente, isso irá, de fato, ampliar a gama de pensamento dos indivíduos. (…) “Há outras razões para esperar mudanças rápidas. A tecnologia da informação promete permitir que menos pessoas façam mais trabalho.”
“Ainda não mencionamos o que pode muito bem ser a razão mais convincente de todas: a pressão sobre a administração para lidar com problemas cada vez mais complicados de engenharia, logística e marketing. A distância temporal entre a descoberta de novos conhecimentos e sua aplicação prática vem diminuindo rapidamente, talvez a uma taxa geométrica. A pressão para se reorganizar a fim de lidar com o mundo complicado e veloz deve se tornar muito grande. Improvisações e “ajustes” dentro dos quadros organizacionais atuais provavelmente se mostrarão bastante inadequados; é de se esperar um repensar radical das ideias organizacionais.”
“Que problemas organizacionais e sociais provavelmente surgirão como subprodutos de tais mudanças? Pode-se imaginar grandes problemas psicológicos decorrentes da despersonalização das relações dentro da gestão e da maior distância entre as pessoas em diferentes níveis.”
“Mas mesmo isso é bastante incerto. A pesquisa atual sobre a simulação de máquinas de processos mentais superiores sugere que seremos capazes de programar grande parte do cargo de topo antes que muitas décadas tenham se passado. Há uma boa autoridade para a previsão de que dentro de dez anos um computador digital será o campeão mundial de xadrez, e que outro descobrirá e provará um novo teorema matemático importante; e que, em um futuro um pouco mais distante, “o caminho está aberto para lidar cientificamente com problemas mal estruturados – para tornar o computador coextensivo com a mente humana“.
E finalmente: “Talvez o maior passo que os gerentes precisam dar seja interno, psicológico. Tendo em vista o fato de que a tecnologia da informação desafiará muitas práticas e doutrinas estabelecidas há muito tempo, precisaremos repensar algumas das atitudes e valores que tomamos como garantidos. Em particular, talvez tenhamos que reavaliar nossas noções tradicionais sobre o valor do indivíduo em oposição à organização e sobre os direitos de mobilidade dos homens jovens em formação. Esse tipo de investigação pode ser dolorosamente difícil, mas será cada vez mais necessário.”
Impressiona a lucidez e o nível de acerto das previsões, mesmo hoje, mais de 60 anos depois, em um cenário em que o mundo mudou (e ainda vai mudar mais) de forma radical, para sempre. A tecnologia, em especial, vem aumentando rapidamente sua influência na vida de todos e sobretudo na gestão das empresas, tornando o seu domínio um diferencial de sucesso para indivíduos, organizações e sociedades. A dita “transformação digital” vem ganhando mais e mais importância. Seu impacto é “definitivo” e de “longo alcance”.
A tecnologia ocupa mais e mais espaço, automatizando tarefas, inclusive de forma mais abrangente e sofisticada (que reproduz o pensamento humano, como a inteligência artificial), permitindo a manipulação e geração de informações que viabilizam análises complexas, suportando ações e decisões. A comunicação e a colaboração, ficam facilitados. Novos conhecimentos e habilidades são exigidos, em uma demanda crescente por aprendizado.
No entanto, se constatam problemas na sua utilização, como a maior dependência da tecnologia, excesso de informações, problemas éticos (esses mais associados à inteligência artificial), dificuldade de alterações na infraestrutura, segurança cibernética, perda de qualidade nas relações (sobretudo com o uso excessivo de redes sociais), dentre outros. Faz-se então necessária uma análise mais detida de sua utilização, que permita aproveitar seu potencial, minimizando seus efeitos adversos. A consciência (e conhecimento) dos mesmos é imprescindível em um mundo “dominado” pela tecnologia.
No cenário atual, constatamos que a velocidade de mudança só faz crescer (vide os acontecimentos recentes como a pandemia e a guerra, bem como os fenômenos climáticos extremos). Tudo se torna mais incerto, volátil, complexo, ambíguo (VUCA), frágil, ansioso, não linear e incompreensível (BANI). A resiliência e a adaptabilidade ganham destaque.
Hoje, quase 65 anos depois, se constata que, à mudança e à tecnologia se associam, como previram Leavitt e Whisler, os aspectos humanos, individuais e coletivos, que vêm ganhando mais relevância, sobretudo com a pandemia e seu efeito de levar grande contingente de pessoas a repensar o significado de suas vidas pessoal e profissional, levando a movimentos como o “Great Resignation”. Observa-se também um foco maior em questões como diversidade, inclusão e igualdade (DEI), saúde e bem estar, bem como na agenda ESG. Também se nota uma maior polarização nas relações, que contribui para tornar o quadro mais desafiador. Disputas de poder (e privilégios) vêm se acirrando.
As pessoas nas organizações demandam um “olhar” mais personalizado, mais focado, um tratamento que leve em conta suas características individuais, suas necessidades e expectativas, ligadas à razão e à emoção. Satisfação pessoal, motivação, tratamento igualitário, bem estar e saúde, são a base para o desempenho. O dito “foco nas pessoas”, tão discutido e propalado no ambiente empresarial, depende do “olhar humano” da gestão, que vai além de metas e resultados puramente quantitativos, que por si só não são sustentáveis.
Vivemos em um ambiente cada vez mais conectado, onde as relações (entre indivíduos, empresas, grupos e sociedades) se intensificam a cada dia, constituindo verdadeiros ecossistemas em que os atores dependem uns dos outros para gerar “valor” que deve (ou deveria) ser compartilhado. Onde a interdependência (e os riscos associados) aumenta crescentemente. A tecnologia é a base destas relações, a grande viabilizadora, mas não é condição suficiente para seu sucesso.
Sendo assim, podemos destacar três fatores principais que afetam as organizações e sua gestão: a mudança, a tecnologia e as pessoas. Estes se interligam, são interdependentes, produzindo relações de causa e efeito, de natureza sistêmica, levando a um ambiente de grande complexidade.
Nesse contexto, dentre tantas incertezas, cabe perguntar: como deve (e deverá) ser a gestão de forma a que pessoas, organizações e a própria sociedade tenham sucesso, sobrevivendo e progredindo? Não há uma resposta simples, única, que trate dos problemas das organizações e de sua gestão, pelo contrário. Faz-se necessário refletir sobre o passado, sobre o que aprendemos até aqui, considerando o que se pode antecipar do futuro, para encontrar uma abordagem que sirva de referência mínima para a compreensão de organizações e sua gestão, respeitando as características de cada um, sejam indivíduos ou organizações.
Para enfrentar os desafios que se impõem (e os que virão a surgir), precisamos de um modelo de gestão de natureza mais estável, porém flexível, que preserve o núcleo (core) da organização, suas características fundamentais e diferenciadoras, que sustentam as demais ao longo do tempo, ao mesmo tempo que torna possível a evolução, com melhoria contínua e inovação.
Este é o nosso objetivo com este trabalho: apresentar uma perspectiva (ainda que preliminar) que facilite essa compreensão, tendo como foco elementos de natureza mais estável, privilegiando os aspectos humanos.
Qual o Caminho Para as Organizações e a Gestão?
Tradicionalmente, a gestão nasce com características de natureza mais mecanicista (influenciada pela adoção das máquinas na Revolução Industrial) e científica, evoluindo com o tempo, na medida em que se percebe com mais clareza a influência de fatores como o ambiente, as mudanças e o ser humano. Estratégia, planejamento, cultura, estrutura, tecnologia e processos, juntamente com aspectos financeiros, são os principais elementos da gestão.
Com o tempo, a necessidade de “gerar valor” para os clientes e empregados cresce e com ela a importância do que se denomina “experiência”, fortemente influenciada pela tecnologia, mas também pelos aspectos humanos. Surgem as plataformas e os ecossistemas, baseados em colaboração para atingir resultados. O desenvolvimento tecnológico, que ganha ares de ficção científica, viabiliza soluções inimagináveis em uma tendência que parece não ter fim e se intensifica a cada dia. A vida “online”, “virtual”, avança sobre a vida “física”, “real”.
A experimentação e a inovação se tornam imperativos. Mas é também fundamental preservar as atividades de natureza mais estável, que permitam à organização operar, tomando por base suas estratégias e objetivos, fornecendo produtos e serviços, de forma eficiente, melhorando continuamente.
Daí surge o conceito de ambidestria organizacional: “Ambidestria organizacional é um conceito ligado ao universo corporativo que designa a busca pela eficiência operacional e pela capacidade de inovação – ou seja, preza pelo equilíbrio. É a capacidade de olhar para o futuro, antecipando tendências e explorando oportunidades, sem se descuidar do presente, pensando na sustentação do negócio.” (FIA)
Neste contexto, o modelo de gestão proposto contempla 4 dimensões (ou etapas): direção, execução, evolução e sustentação, que se definem a partir do que denominamos “núcleo” formado por princípios/ valores e pensamento básico, de natureza mais estável, que servem de direcionadores para os demais, como descrevemos em seguida.
É essencial considerar as dimensões, os princípios/valores e o pensamento básico como um conjunto único (adaptado para cada organização), interligado, interdependente, que precisa buscar sempre o alinhamento, a coerência e o equilíbrio.
1. Princípios e valores
Princípios e valores são como normas e diretrizes que norteiam pensamento e condutas, relacionados a atributos morais e éticos, servindo de linhas mestras, que têm o poder de conectar e unir pessoas, para além dos objetivos materiais, quantitativos, financeiros principalmente. São exemplos a igualdade, a inclusão e a integridade, dentre outros.
Cada uma das 4 dimensões anteriormente citadas tem por fundamento um conjunto de princípios e valores cuja definição e disseminação devem ser objeto de foco constante da organização, sendo a primeira tarefa na sua constituição e manutenção.
As dimensões devem estar alinhadas, serem coerentes, entre si e com os princípios e valores. Estes “ancoram” de forma estável, mais duradoura, pessoas e organizações (e sua gestão). Definem o que é importante, o que deve mudar, o que inspira e traz satisfação.
2. Pensamento básico
Definidos princípios e valores, se identificam e desenvolvem o que denominamos um conjunto que constitui o “pensamento básico” (ou mindset), que influenciam sobretudo os comportamentos. Esta etapa deve preceder as demais, descritas a seguir. Considerando o cenário que descrevemos aqui, este pensamento básico tem como elementos principais:
– visão sistêmica, que valoriza conexões, relações, interdependências;
– melhoria contínua;
– crescimento (como proposto por Carol Dweck, em sua publicação Mindset), que valoriza o aprendizado;
– foco no ser humano.
Princípios e valores, associados aos elementos do pensamento básico, são direcionadores para o desenvolvimento de skills (técnicas e humanas). A partir deles começam a surgir as conexões, as relações tão importantes atualmente.
3. Direção
As ações precisam ser antecedidas da formulação de estratégias, definição de objetivos e metas, constituindo um planejamento, cujas características variam conforme o caso. Este é o lado técnico da gestão, que orienta e direciona a todos.
No entanto, se constata essas ações, de natureza mais técnica, é insuficiente para engajar, comprometer, motivar as pessoas, que precisam perceber que seu trabalho tem significado além de metas de desempenho, financeiras, quantitativas.
Para que os envolvidos se sintam “parte” (e não meros instrumentos para um fim), seu trabalho e a organização a que pertencem, devem ser orientados por uma “causa” que impacte a sociedade de forma positiva, numa perspectiva igualitária, justa, que valoriza o grupo, a sociedade, que inspira tomando por base uma visão de mundo mais agregadora. A isso se denomina propósito, que deve ser claro e compartilhado, refletido em toda a organização.
A definição da direção tem por base uma reflexão centrada no “por quê”, que direciona o “como”, associado à execução. Considerando a velocidade e a constância da mudança, uma avaliação permanente de contexto e tendências, de futuro, se faz também essencial na definição da direção.
Princípios e valores, associados a pensamento básico e propósito contribuem para a definição e implantação da cultura organizacional, indutora dos comportamentos desejados.
4. Execução
A execução se dá através de ações, que se configuram basicamente em estruturas e processos, suportados por tecnologia. Disciplina e método são decisivos, impondo a sua definição prévia. Nesse contexto, se situam abordagens complementares como Lean, Ágil, Six Sigma, gerência de projetos, resolução de problemas, gestão de processos, gestão de mudanças, dentre outras, bem como algumas mais relacionadas à tecnologia (DevOps, por exemplo). A partir daí também se definem as skills adicionais necessárias.
5. Evolução
Esta é a dimensão voltada à adaptação, à necessidade constante de entender as mudanças e tomar medidas para se adequar. É nesse contexto que ganha especial relevância a experimentação, a inovação, a abertura para “o novo”. Para ter sucesso em “evoluir”, a organização precisa mudar e inovar. Não se trata apenas de tratar aspectos técnicos (que são fundamentais, sem dúvida), mas de criar as condições “humanas” que permitam esta evolução. Deve ser objeto de atenção em todas as demais dimensões, bem como na definição de princípios/valores e do pensamento básico.
6. Sustentação
A prática mostra que a mudança é uma constante, sem fim. Nesse contexto, se impõe a necessidade de institucionalizar (e sustentar) as ações, de modo a garantir que problemas (previstos ou não) não venham a comprometer o que já foi implementado e os planos futuros.
A sustentação depende de alterações em estruturas, processos, tecnologia e práticas (como sistemas de reconhecimento e recompensa) alinhadas aos objetivos, que se refletem em comportamentos, na cultura das organizações, em suas lideranças (principalmente) e nos demais envolvidos. Depende principalmente de uma atuação vigilante, que perceba ou antecipe desvios e atue com rapidez na correção, sem perder de vista os objetivos de médio e longo prazos. A sustentação deve garantir o alinhamento, o equilíbrio entre os elementos aqui expostos.
A figura a seguir demonstra de forma gráfica o modelo proposto:
A Liderança
“Nos tornamos líderes no dia em que decidimos ajudar as pessoas a crescerem, não os números.” (Simon Sinek)
Para concluir nossa proposta, não podemos deixar de destacar que a liderança tem papel primordial em todos os aspectos das organizações e de sua gestão, sendo a grande responsável pela definição, manutenção e atualização de todos os aspectos aqui discutidos. Sem uma liderança alinhada a princípios e valores, com um pensamento básico bem definido e colocado em prática, voltada ao desenvolvimento de pessoas, humilde, autêntica, disposta a ouvir com atenção, a refletir e aprender sempre, nenhuma proposta de melhoria para as organizações e sua gestão terá êxito.