Em um ambiente complexo e incerto como o atual, uma única empresa dificilmente possui os recursos necessários para desenvolver e comercializar sozinha uma proposta de valor de maior complexidade.
Para ter sucesso, sobretudo para inovar, é necessário que se formem associações, ou ecossistemas, que reúnem diferentes atores, interdependentes, para colaborarem na busca da realização ou cocriação de valor.
Nesse contexto, “Um ecossistema de inovação é o conjunto em evolução de atores, atividades e artefatos, e as instituições e relações, incluindo relações complementares e substitutas, que são importantes para a atuação inovadora de um ator ou de uma população de atores” (fonte: Innovation ecosystems: A conceptual review and a new definition, Ove Granstrand & Marcus Holgersson, Technovation 90-91, 2020).
A colaboração, associada à complementaridade de diferentes atores, está no cerne dos ecossistemas, onde o destaque não é a ação individual, mas a soma das partes, as interdependências que se complementam e se reforçam de forma colaborativa.
Marketplaces e outras redes em que pessoas e/ou empresas cooperam de diferentes maneiras em torno de um objetivo comum podem ser consideradas como ecossistemas, assim como ocorre quando empresas estabelecidas se relacionam com startups, no contexto da inovação aberta.
Entender os ecossistemas de inovação, seu conceito, características e fatores críticos de sucesso, tomando por base alguns casos de destaque, pode contribuir para a melhoria da atuação das organizações no que tange à inovação, mas também para sua atuação em ambientes colaborativos, em que precisam interagir com outros atores, sejam clientes, empresas ou organizações de diversas naturezas (aqui incluídas entidades governamentais e de ensino, por exemplo) para entregar valor.
Um modelo de ecossistemas
Para uma melhor compreensão do conceito de ecossistemas, utilizaremos uma proposta que descreve os ecossistemas (baseada em: Mapping, analyzing and designing innovation ecosystems: The Ecosystem Pie Model; Madis Talmara, Bob Walravea , Ksenia S. Podoynitsynaa, Jan Holmströmc , A. Georges L. Romme; Long Range Planning, 53, 2020). Segundo o modelo, os elementos de um ecossistema são:
- atores, que representam as entidades legalmente independentes, mas economicamente interdependentes envolvidas na realização de atividades produtivas distintas dentro do ecossistema;
- recursos de diversas naturezas (financeiros e humanos, principalmente), que são utilizados para realizar atividades;
- atividades, que são os mecanismos pelos quais um ator gera sua contribuição produtiva para o ecossistema;
- valor, que é cocriado e capturado a partir das interações dos atores;
- risco, função principalmente da dependência, da disponibilidade de recursos e das atividades.
Os atores são o núcleo e a força motriz do ecossistema. A partir de suas atividades se desenvolve a rede de relações e interdependências que gera valor. Os principais destaques, neste caso, são:
- empreendedores, pessoas que são fundamentais para definir o caminho, articulando demandas e trocando experiências, gerando empregos e renda;
- investidores de risco, que fornecem o capital para transformar as idéias em negócios, apoiando não somente com recursos, mas também com conhecimento e conexões, aceitando risco e consequentemente perdas;
- organizações, que dispõem dos recursos (sobretudo financeiros), conexões e capacidade de articulação;
- instituições de ensino, que contribuem no processo de desenvolvimento dos talentos e nos esforços de pesquisa, que aceleram a inovação;
- governo, que deve atuar como um orquestrador, um facilitador, mas também como um formulador de políticas, com incentivos (fiscais, por exemplo), financiamento, definição de ambiente regulatório e efetiva participação, conforme o caso.
Um outro conceito importante é o de ciclo de vida de um ecossistema, definido pelo StartupGenome como: um “modelo objetivo que ajuda os governos a medir onde seu ecossistema está, priorizar suas lacunas e definir planos de ação focados que maximizam o impacto em vez de dispersar seus recursos limitados”.
O ciclo de vida, conforme a abordagem proposta, é dividido em 4 fases:
- ativação: atração de atores e recursos;
- globalização: aumento da conexão global com fundadores de grandes ecossistemas;
- atração: atração global de recursos para expandir e preencher lacunas do ecossistema, remoção de barreiras à imigração, formulação e implementação de políticas;
- integração: integração do ecossistema aos fluxos globais, nacionais e locais de recursos e conhecimentos, otimização de leis e políticas para sustentar competitividade e crescimento, difusão dos benefícios para outros setores da economia e partes do país.
Este conceito de ciclo de vida reforça a importância dos atores e recursos, bem como do apoio governamental. Aponta ainda a importância do estabelecimento de conexões globais, de integração, fundamentais para o desenvolvimento das redes de cooperação. Dentre os atores, os imigrantes aparecem com destaque dado o seu caráter empreendedor e mais tolerante a risco, além da contribuição pela diversidade de formação e cultura, que contribuem para o aprendizado e a inovação.
A situação atual
Um estudo recente, do ano de 2022, produzido pela StartupGenome, apontou que:
- os mesmos cinco ecossistemas permanecem no topo do ranking como em 2020 e 2021, mas Pequim caiu um lugar, com Boston assumindo seu antigo lugar em #4. Silicon Valley é o número 1, seguido por Nova York e Londres empatados em #2, Boston em #4, e Pequim em #5;
- Seul entrou no top 10 global de ecossistemas pela primeira vez, subindo seis posições em 16º lugar em 2021 e #20 em 2020;
- vários ecossistemas indianos subiram no ranking, mais notavelmente Delhi, que está 11 posições acima de 2021, entrando no top 30 pela primeira vez na #26;
- no geral, os ecossistemas da China caíram no ranking, um reflexo do declínio relativo do financiamento em estágio inicial em comparação com outros ecossistemas;
- Helsinki subiu mais de 20 posições, juntando-se à categoria vice-campeã na posição #35;
- um recorde de 540 empresas alcançou o status de unicórnio em 2021, contra 150 em 2020;
- em 2021, o Brasil registrou crescimento de 237% no valor em dólar das rodadas da Série B+ em relação a 2020. O valor total de exits do país para 2021 foi de US$49 bilhões, um grande salto a partir do US$1 bilhão em 2020.
- a Ásia experimentou um aumento de 312% no valor em dólar de exits acima de US$50 milhões de 2020 a 2021.
Do cenário descrito anteriormente, vale destacar o aumento dos investimentos de risco no Brasil, que tem hoje a cidade de São Paulo ocupando a 30.a posição no ranking mundial, com grande participação de fintechs.
Além disso, o relatório de 2022 do mesmo Startup Genome, ainda aponta que a América do Norte teve 312 unicórnios em 2021, enquanto em 2020 a contagem de unicórnios foi de 83. Já a África produziu três unicórnios no período abrangido pelo relatório, todos fintechs.
Para uma melhor compreensão, descrevemos a seguir as características de destaques de alguns dos principais ecossistemas de inovação: Vale do Silício, Nova Iorque, China e Israel.
Vale do Silício
Localizado no Estado da Califórnia, nos EUA, é o maior e mais conhecido ecossistema de inovação do mundo, tendo em valor de mercado estimado de cerca de US$2 tri (fonte : Startup Genome), o que revela suas dimensões e importância econômica. Compreende a região formada por San Francisco, East Bay, San Jose e o Oceano Pacífico.
É a região onde nasceu a HP (em 1939). Tem sua origem na invenção e produção de transistores, a partir de uma ideia de Willian Shockley que procurou à época reunir pessoas com grande conhecimento na área. Em meados da década de 50 surgiu a Fairchild Semiconductor, usada como base do programa aeroespacial dos EUA.
Em 1969, o Stanford Research Institute tornou-se um dos quatro nós da ARPANET, projeto de pesquisa do governo que se tornaria a internet. Em 1970, a Xerox abriu seu laboratório PARC em Palo Alto. O PARC inventou a tecnologia de computação inicial, incluindo a computação ethernet e a interface gráfica do usuário. Em 1971, o jornalista Don Hoefler intitulava um relatório em três partes sobre a indústria de semicondutores “SILICON VALLEY USA”, quando então surgiu o nome pelo qual a região é famosa.
A participação do governo foi mais importante no início (nas áreas militar e aeroespacial). Mais tarde, com o advento da Internet, principalmente no final da década de 90, apareceram muitas empresas de software.
O Vale do Silício é caracterizado pela “união de partes que funcionam como um verdadeiro algoritmo”, com destaque para as pessoas inteligentes e experientes em negócios (que são atraídas para lá), apaixonadas, criativas e motivadas pelo sucesso, e principalmente que aceitam risco. Muitos desses empreendedores, como em outros locais, são imigrantes (diversos, intrinsecamente motivados, empreendedores, dispostos a assumir riscos).
Há um constante e intenso compartilhamento de conhecimento (há muita colaboração, muitos eventos e conferências que facilitam conexões e aprendizado). Existem várias comunidades de empreendedores. As incubadoras e aceleradoras dão acesso a mentores e advisors com conhecimento e experiência (inclusive em mercados específicos). Estes mentores também permitem acesso a novos contatos.
Para apoiar as empresas e empreendedores é oferecida uma grande quantidade de serviços profissionais: jurídico, tributário, contabilidade, marketing, folha de pagamento, coworking e bancos (acessíveis por custo razoável). Estes serviços facilitam muito a criação e desenvolvimento de empresas e negócios.
Todos estes elementos contribuem para um ambiente fértil para novas ideias e modelos de negócio, o que permite um feedback rápido acerca da ideia. Em particular, a grande concentração de clientes potenciais, facilita testar ideias e criar relacionamentos. Fica facilitada também a identificação de conexões de negócio de valor e a construção de relações sólidas.
Nova Iorque
“Estamos trabalhando com e para comunidades, colocando as necessidades dos nova-iorquinos antes de tudo. Para nós, o desenvolvimento econômico é mais do que apenas o resultado final — trata-se do impacto humano. É por isso que estamos investindo nos empregos, indústrias e comunidades que impulsionarão o futuro econômico de Nova Iorque e tornarão nossa cidade mais forte, segura e mais equitativa.” (NYEDC)
Segundo maior ecossistema do mundo (juntamente com Londres) de acordo com o StartupGenome, tem sua origem na crise financeira de 2008 (e seus reflexos recessivos sobre o sistema financeiro), que foi um catalisador. Em resposta, a cidade apresentou um plano, elaborado pela Prefeitura local, composto basicamente de uma estratégia abrangente, de diversificação econômica de longo prazo, visando oito setores em que a cidade já se destacava, incluindo finanças, biociência, moda, turismo, mídia e tecnologia.
À estratégia, se associaram políticas de apoio da prefeitura da cidade, iniciadas pela New York City Economic Development Corporation (NYCEDC), para suporte ao setor de startups. Procurou-se atrair capital (fundos apoiados pela prefeitura inicialmente) e talentos, bem como universidades de ciência e tecnologia (com o consequente crescimento das atividades de P&D). Foram também criadas redes de espaços/incubadoras de coworking e estimulada a formação de comunidades de empreendedores.
Conforme relatório do StartupGenome, 2021 foi um ano em que ocorreu muito investimento de risco (Venture Capital). As startups apoiadas por empreendimentos na região arrecadaram mais de US$55 bilhões — ante US$20,2 bilhões em 2020.
Conforme indicadores da organização Tech:NYC, a cidade tinha até o final de 2021 um total de 25.451 startups (crescimento de 145% em uma década), atingindo um valor de mercado de aproximadamente US$371 bilhões.
Nova Iorque se destaca pelo ambiente que facilita a criação de novos negócios, pela quantidade e qualidade de talentos (com grande número de imigrantes na força de trabalho) e também inúmeras instituições de ensino de qualidade reconhecida, bem como pelos benefícios fiscais.
China
A China, que tem diversas cidades listadas entre os maiores ecossistemas de inovação no mundo (Pequim e Shangai, entre elas), revela uma longa história de busca de inovação, produzindo as “quatro grandes” invenções: a bússola, a pólvora, a fabricação de papel e a impressão. Com o tempo se transformou em uma economia orientada ao mercado e tem sustentado um período de crescimento constante e longo. Com isto, o PIB per capita cresceu 32 vezes desde 1990 e a participação no PIB mundial saltou para quase 19%, tornando a China a segunda economia mundial.
O modelo de crescimento converteu o país na “maior fábrica do mundo”, produzindo de tudo e se apoiando fortemente em investimentos, exportações e uma enorme mão-de-obra de baixo custo. Atualmente, a economia é impulsionada principalmente pelo avanço tecnológico, para enfrentar a desaceleração de seu modelo de crescimento passado. Melhorias na capacidade de inovação, especialmente em seus setores industriais, são consideradas essenciais para a sustentabilidade do crescimento da China.
Em 8 de novembro de 2012, em um relatório entregue pelo presidente Hu Jintao no 18º Partido do Congresso Nacional, a China anunciou que passaria para uma “economia orientada à inovação”.
Uma característica determinante é a influência do governo na direção dos negócios e do crescimento econômico, que procura criar um ambiente regulatório favorável, define políticas, financia e estimula investimentos, como em infraestrutura, por exemplo.
São fortes os estímulos financeiros do governo para desenvolver os institutos de P&D, tendo como foco pesquisa básica e aplicada, em indústrias “estratégicas” de alta tecnologia. Nesse contexto, destacam-se as áreas de inteligência artificial (onde a China se destaca em nível mundial), biotecnologia, transição energética e veículos elétricos.
Na educação, as universidades ainda são os principais atores primários (com aumento natural de graduados em ciência e tecnologia). A China tem uma vantagem significativa em acessar as redes globais de profissionais chineses no setor de alta tecnologia, devido ao grande número de estudantes chineses sendo enviados para estudar em outros países desde as reformas econômicas.
Um aspecto importante, que facilita a inovação, é o fato de que os chineses nos últimos anos tiveram que se adaptar a mudanças radicais — e aprenderam que tecnologias inovadoras podem ser a chave para sua sobrevivência. Com isso, há uma vasta população com propensão para adotar e adaptar-se às inovações, em uma velocidade e escala que é incomparável em outros lugares do mundo. Como exemplo, temos o setor de pagamentos móveis : em 2019, a despesa bruta total na China via aplicativo móvel de 347 trilhões de yuans, ou cerca de US$54 trilhões, foi 551 vezes maior do que a despesa total nos Estados Unidos, de US$98 bilhões.
Israel
Também conhecido como “Startup Nation”, Israel tem um dos principais ecossistemas de inovação da atualidade, baseado na cidade de Tel Aviv. Trata-se de um país pequeno, com características muito específicas ( cerca de 9.2 milhões de habitantes, ocupando uma extensão de 22.145 Km2), que conseguiu sua independência apenas em 1948.
É um país com poucos recursos naturais, com a maior parte do território árido, em permanente tensão com vizinhos, o que representa constantemente uma ameaça à sua existência e que leva a uma maior ênfase em defesa e forças armadas, o que acaba se refletindo no desenvolvimento de determinados setores, como cibersegurança.
A transição do desenvolvimento centralizado para o empreendedorismo aconteceu em meados da década de 60, a partir de um forte apoio de políticas governamentais (com incentivos fiscais, por exemplo ) e investimento grande em infraestrutura.
O foco são produtos/serviços que atendam às necessidades, compensam as deficiências do país (em irrigação, defesa, alimentação/agricultura e saúde, principalmente). Como consequência, por exemplo, em 2021, Israel representou ¼ do investimento de risco mundial em carne cultivada (https://pitchbook.com/news/articles/israel-cultivated-meat-startup).
É um país com uma grande comunidade empreendedora, bem como de P&D, e uma alta concentração de talentos. Algumas outras características de destaque são:
- instituições estáveis;
- regras que são seguidas;
- diversidade, com muitos imigrantes das mais variadas origens;
- educação, que desde o início valoriza desafiar o óbvio, fazer perguntas, debater e inovar;
- forte intercâmbio com o exterior, tendo como fator diferenciador em relação a outros lugares o grande número de viagens de jovens para o exterior, para lazer e educação;
- facilidade para criar negócios;
- muito investimento externo em empresas de tecnologia.
Dentre os aspectos citados, um merece especial atenção que é a cultura local. Em Israel os aspectos culturais predominantes em sua população, que tem origem em imigrantes de inúmeras regiões do mundo, facilitam o aprendizado e a inovação. Características como franqueza, assertividade, tolerância a risco e à diversidade, autonomia, pragmatismo, questionamento constante, autocrítica e aprendizado com erros, permeiam a sociedade israelense.
Tais características fizeram com que um grande número de empresas, incluindo Intel, Cisco, Volkswagen, Anheuser-Bosch, Apple, Citibank e muitos outros implantassem filiais e centros de inovação em Israel, contribuindo para o desenvolvimento do ecossistema de inovação e para a economia de um modo geral.
O que podemos aprender?
“Ao servir como laboratórios vivos e centros de experimentação, as cidades não só criam valor a nível local, mas também podem dimensioná-lo rapidamente para um nível regional, nacional ou até mesmo global.”
(Urban Future With a Purpose)
A formulação, desenvolvimento e atuação dos ecossistemas trazem importantes lições para as empresas, além daquelas mais diretamente ligadas aos esforços para inovar. Um primeiro ponto que vem a reforçar as conclusões de estudos em outras áreas é o papel das pessoas.
Dentre os diversos atores, as pessoas ou talentos, motivadas, capacitadas, com autonomia, dispostas a colaborar e aprender de forma contínua, a experimentar em um ambiente de confiança, são o motor que faz as empresas crescerem e prosperarem. Diversas, unidas em torno de um propósito (e de uma proposta de valor), colaboram, compartilham recursos (e sobretudo conhecimento e experiências), aceitam riscos, dividem resultados.
Um segundo fator de destaque é a cultura. No caso dos ecossistemas se nota a influência determinante da cultura do próprio país (como é o caso da China e de Israel), que acaba por influenciar a cultura das organizações. De fato, fatores culturais, que se traduzem em comportamentos, têm grande influência nas diversas dimensões de negócio. Para serem bem sucedidas, organizações e países devem ter consciência da influência da cultura no dia a dia, identificando as alterações que devem ser implementadas para atingir os objetivos. Autonomia, confiança, experimentação, adaptabilidade, diversidade, integração, colaboração e tolerância ao erro e ao risco são traços que se repetem nos esforços bem sucedidos de inovação.
Conexão e colaboração em um ambiente que reúne variados atores que atuam de forma complementar e interdependente, não hierárquica por natureza, alinhada em torno de um objetivo comum, configuram um terceiro fator.
Por fim, vale ressaltar a importância da atuação de forma disciplinada, planejada, que procura desenvolver pontos fortes, reconhecendo necessidades e oportunidades específicas.